Tesoura (verbete seguido de envoi)
- Manoela Rónai

- 19 de abr. de 2018
- 1 min de leitura
(texto criado para Oficina de Produção, com Júlia Studart, em 2015.2)

Duas lâminas articuladas face a face, com razoável poder de corte, dispostas assim uma sobre a outra e unidas por um eixo. Controladas por duas aberturas onde se introduzem os dedos que a manejam. Podem cortar a salsinha que irá temperar a pescadinha, a barba, o trabalho escolar, a embalagem plástica na qual enfiaram (sabe-se lá por quê) as maçãs, e também a pele já gasta dos suicidas. Não se tem notícia de que tenham cortado versos para fazer poesia. Tentam redenção, no entanto, no corte do papel de presente que embrulhará a lembrança de Natal, do tecido da costureira dedicada e dos caules de flores que almejam a água do vaso, para estender-lhes a vida. Quando nos convencemos de que têm boa índole, já cansada de abrir cartas, cortar os barbantes que amarravam livros ou as unhas encravadas que então produzem o mais sincero sentimento de alívio, eis que mostram um outro lado e revelam o valor da conta de luz, matam o garoto que hesitou ao entregar a carteira e, ardilosas, atacam o dedo daquele que as conduz.
Envoi
Um dia, um menino viu a mãe, tesoura na mão, a destrinchar um frango assado. A mudez lhe tomou de súbito, indagou em silêncio o paradeiro das penas – quando a galinha era ave, e não bandeja de carne no supermercado. Indagou o destino da cabeça, do cérebro pequeno que não aprendeu português. Se desfez nele misteriosamente a inocência, olhou o objeto manipulado com destreza e foi para seu quarto ler Fernando Pessoa.


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