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A repetição e o corte para ressignificar em Ruy Belo

  • Foto do escritor: Manoela Rónai
    Manoela Rónai
  • 19 de abr. de 2018
  • 8 min de leitura

(trabalho apresentado para a disciplina de Tópicos I, com o professor Manoel Ricardo de Lima)


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Tenho grande intimidade com formas e substâncias que mudam de casa e mudam a casa só por lá estarem.
Wesley Peres, PalimpsestoS

No segundo livro de Ruy Belo, O problema da habitação – Alguns aspectos, estamos diante de uma ideia de espaço muito peculiar. Fica evidente que o problema que Ruy Belo pretende apresentar não é um pensamento do espaço, mas do espaço que se torna casa, em recusa ao lugar vazio. Claro que a noção de casa será uma noção plural e o interesse pelo espaço habitado não é sinônimo de desinteresse pelos desertos, muito pelo contrário: é uma maneira de buscar uma habitação possível em lugares improváveis. É uma alternativa de, com um olhar dedicado, achar novas formas de estar no mundo.


Parece-me que, além da exploração de uma imagem que Júlia Studart chama de uma condição horizontal sobre uma espécie de terra devastada, outra imagem ganha força de forma semelhante: a do estar no mundo das palavras. Ou ainda, a da condição de ressignificação que o poeta busca quando as emprega. Para isso, o conceito de habitação foge à relação do homem com o espaço e se amplia para, mais do que meramente entender como ocupar o mundo, destrinchar os modos de povoar um tempo e apreender uma retirada das palavras do seu estado de hábito. É o que ocorre no verso:

Não há outro lugar para habitar
além dessa, talvez nem essa, época do ano
e uma casa é a coisa mais séria da vida.

Dei atenção especial a dois poemas que são bons exemplos da maneira como o autor português usa procedimentos de corte e repetição para alargar o terreno imaginativo que as palavras sugerem ao seu leitor. São eles, I Quasi Flos:

A morte é a verdade e a verdade é a morte
Tão contente de vento, ó folha que nomeio
como quem à passagem te colhesse,
palavra de que tu, ó árvore, dispões para vir até mim
do alto da tua inatingível condição
De muito longe vinda, inviável lembrança
indecisa nas mãos ou consentida
por alguma impossível infância
E a alegria é uma casa recém-construída
Face melhor de todos nós, ó folha
dos álamos nocturnos e antigos visitados pelo vento,
no calmo outono, o dos primeiros frios, sais
do ângulo dos olhos, acolhes-te ao poema
como no alto mês de maio a flor imóvel do jacarandá
Não há outro lugar para habitar
além dessa, talvez nem essa, época do ano
e uma casa é a coisa mais séria da vida

e III Imaginatio Locorum. Desse poema, por sua extensão, reproduzirei apenas um trecho:


Era uma vez talvez algum país de sinos
de sons entreouvidos no passado
constantemente renovado de quem morre cada dia
e forra de manhã o interior dos olhos
pastor de escolhos vários entre os limos e os limbos
[...]
Como encontrar-me? É ver-me nesse ou noutro dia
debaixo do olhar da mais jovem mulher
que como um manto branco pelos dias se desdobra
em Patmos nessa aldeia ou naquela inesquecível cidadela
setenta vezes vista blasfemada e admirada
sempre deserta e sempre povoada
aonde vale a pena o pôr do sol
e a palavra é mais que nunca provisória
Não temos o direito à alegria nem talvez
ao próximo rumor do mar distante
Nas margens do Halis talvez habite ainda
a esperança de que os deuses encham tudo
o cheiro do jornal a tragédia da música na rua
o coração fechado à primeira manhã
as tardes de novembro a dor de folha em folha
Talvez o persistente trigo esconda um pouco da verdade
Talvez seja de Deus o nosso tempo
E a alegria é uma casa demolida

Ruy Belo traça várias estratégias para tirar as palavras do uso trivial que delas faz a comunicação cotidiana. Uma das ocorrências mais interessantes é a de versos que se repetem com pequenas modificações, criando uma nova leitura. Se estivessem em um mesmo poema, talvez tal recurso pudesse vir de uma tentativa de estabelecer alguma forma de refrão, mas não é o caso em O problema da Habitação. Tomemos como exemplo o seguinte verso, presente no primeiro poema, I Quasi Flos: “E a alegria é uma casa recém-construída”, e o verso: “E a alegria é uma casa demolida”, presente em III Imaginatio Locorum.


Os versos diferem inicialmente em dois aspectos: o primeiro, o contexto, que deixaremos para verificar mais adiante. O segundo, a adjetivação que se dá à casa, esta que é a alegria. É muito interessante notar a opção pelo uso da palavra “casa”. O autor poderia ter usado “uma construção recente” ou “uma demolição”, expressões que aparentariam ter o mesmo sentido, mas não teriam. A casa é o espaço de morar. E uma casa demora a tornar-se casa. Há um tempo próprio à casa que não transcorre em uma construção qualquer. A casa é, também, acolhimento. E o único acolhimento possível é ainda o do poema. É o que implicam, em sua doce vulnerabilidade, as linhas: Face melhor de todos nós, ó folha [...], acolhes-te ao poema.


Mas se a alegria é uma coisa e outra, como podemos entender a noção de alegria para Ruy Belo? E como podemos entender a casa? Talvez, a demolição seja, então, uma outra face de algo recém-construído. E não estão, mesmo, em relação constante o construir e o demolir? Destrói-se para pôr algo no lugar. Tão logo isto esteja velho, destrói-se de novo, e se constrói mais uma vez. Em que medida as duas ações são irmãs? Mas de que forma o poeta poderia ter disparado essa ideia se não pelo uso das duas palavras em posicionamento análogo? Assim que pensamos lado a lado recém construída e demolida não podemos mais pensar essas palavras no seu significado simples. É uma forma de extinguir um sentido tradicional e único e inaugurar uma nova forma de olhar as palavras como espaços de multiplicidade. Assim, o texto ganha potência revolucionária de criar o novo, construindo-o, e abandonar o tradicional, num ato de demolição.


O contexto desses versos nos ajuda, também, a ampliar as possibilidades de visão expostas nos parágrafos acima. Não podendo fazer uma análise de todo o poema, pois fugiria ao escopo ao qual estamos limitados, farei uma breve análise dos títulos de ambos os poemas. I Quasi flos, poema de abertura do livro, permite muitas interpretações, desde o título. A expressão, se literalmente traduzida do latim, poderia resultar em “do mesmo modo que o botão da flor”. O problema é que essa tradução já é uma redução de sentido, pois a palavra flos, em latim, detém muitos significados. Pode ser 1- a flor, 2- o botão da flor 3- o suco da flor 4- a primeira barba, buço 4- a virgindade, 5- a melhor parte, 6- a parte mais fina, 7- vigor, força, 8- brilho, e finalmente, 9- o aroma das flores.


Seguindo no aprofundamento do contexto, busquei na literatura momentos em que essa expressão tivesse sido usada, no latim. Duas ocasiões pareceram dignas de nota. A primeira, no antigo testamento: Homo natus de muliere brevi vivens tempore repletus multis miseriis. Quasi flos egreditur et conteritur et fugit velut umbra et numquam in eodem statu permanet. (JO 14:1-2). As edições brasileiras que encontrei mais fiéis ao texto parecem ter optado pela primeira acepção, e a passagem foi assim traduzida: O homem nascido da mulher tem vida curta mas cheia de misérias. É como uma flor que desabrocha e murcha, uma sombra que foge sem parar. Existem traduções que simplificam ainda mais a passagem, tirando a menção à flor em absoluto. É o exemplo de: O homem nascido de mulher tem vida curta e passa por muitos desapontamentos e dificuldades.


Ao me deparar com essa primeira citação bíblica, não me parecia estranho o verso de abertura do livro de Ruy Belo: A morte é a verdade e a verdade é a morte. Mas em que medida a leitura do poema mudaria se estivéssemos diante de um Quasi flos na sua acepção de “do mesmo modo que a força”? Ou cientes de que ambas são traduções possíveis? Caso quisesse nos restringir a esse versículo da Bíblia, certamente Ruy Belo poderia ter assim nos indicado e se não o fez, é porque a abertura de significado foi intencional. Mais do que resolver o problema de como – ele mesmo – habitar o mundo, o poeta parecia atento para a resolução de outros problemas de habitação: como achar lugar para as palavras em um mundo que não as olha? Como rever as palavras antigas? Como trazer a um novo lugar e dar vigor de fala a palavras consideradas mortas?


Pesando essas questões, me vi diante de mais uma passagem do Antigo Testamento: Quasi arcus refulgens inter nebulas gloriae et quasi flos rosarum in diebus vernis et quasi lilia, quae sunt in transitu aquae, et quasi flos libani in diebus aestatis (EC, 50:7-8). A tradução, Era como o arco-íris fulgurando entre nuvens de glória! Era como a flor da roseira em dia de primavera, como os lírios à beira de uma corrente de água, como ramo de incenso que exala seu cheiro no verão. As duas passagens, quando analisadas em conjunto, parecem opostas em sua essência: uma reforça as misérias da vida do homem e a outra exalta as grandezas de Deus. Ler o poema com uma em mente, ou com a outra, pode alterar drasticamente a apreensão do poema pelo leitor. Ler com as duas, mostra o poder ímpar de Ruy Belo de ressignificação e de tirar as palavras de lugar cristalizado.


Segui então para III Imaginatio Locorum, o terceiro poema do pequeno livro azul. Novamente, esbarrei em um título em latim. Desta vez, suponho que a origem seja Tomás de Kempis, monge alemão de 1380, autor de A Imitação de Cristo. No original, Imaginatio Locorum et mutatio, multos fefellit, ou em uma tradução livre, a imaginação e uma mudança de local já enganaram muita gente. Ou seja, uma expressão idiomática com o sentido geral de que aquilo que desconhecemos nos parece sempre muito atraente. Essa ideia, de que a felicidade que não alcançamos está presente na vida e na casa do outro, que apenas adivinhamos, ecoa em vozes anteriores da poesia portuguesa. É o caso do poema de Álvaro de Campos, Na Casa Defronte:

Na casa defronte de mim e dos meus sonhos,
Que felicidade há sempre!
Moram ali pessoas que desconheço, que já vi mas não vi.
São felizes, porque não sou eu.
As crianças, que brincam às sacadas altas,
Vivem entre vasos de flores,
Sem dúvida, eternamente.
As vozes, que sobem do interior do doméstico,
Cantam sempre, sem dúvida.
Sim, devem cantar.
Quando há festa cá fora, há festa lá dentro.
Assim tem que ser onde tudo se ajusta —
O homem à Natureza, porque a cidade é Natureza.
Que grande felicidade não ser eu!
Mas os outros não sentirão assim também?
Quais outros? Não há outros.
O que os outros sentem é uma casa com a janela fechada,
Ou, quando se abre,
É para as crianças brincarem na varanda de grades,
Entre os vasos de flores que nunca vi quais eram.
Os outros nunca sentem.
Quem sente somos nós,
Sim, todos nós,
Até eu, que neste momento já não estou sentindo nada.
Nada! Não sei...
Um nada que dói...

Aqui vemos que Ruy Belo tem a rara ciência de conseguir uma voz original, ao mesmo tempo mantendo uma ligação com a literatura de sua terra, num diálogo vivo e que prescinde da pura reprodução estilística ou de sonoridade. Talvez por isso mesmo seus poemas são atemporais, mas conseguem o pretendido ao habitar todos os tempos. A qualidade de ressonância desta escrita se revela também ao lermos em voz alta as estrofes que à primeira vista parecem não se ligar de maneira esperável. Ao criarem uma existência no mundo da fala, esses poemas adquirem nova fisiologia.


Voltando ao poema de Ruy Belo, nos versos Era uma vez talvez algum país de sinos [...] constantemente renovado de quem morre cada dia, a aproximação entre destruição e renovação, já percebida na relação entre os dois poemas comparados, tangencia outro tema muito caro aos Aspectos tratados no livro: a morte. Não à toa, é a morte que se configura em porta de entrada para o volume que analisamos.

Não poderia terminar esta reflexão sem que minha fala relembrasse um dos transeuntes que encontrei na Rua de mão única, de Walter Benjamin, o caráter destrutivo:


O caráter destrutivo só conhece um lema: criar espaço; só uma atividade: despejar. Sua necessidade de ar fresco e espaço livre é mais forte do que qualquer ódio. [...] ele tem poucas necessidades, e esta seria a mais insignificante: saber o que vai substituir a coisa destruída. Antes de qualquer coisa, no mínimo por um instante: o espaço vazio, o lugar onde se achava o objeto, onde vivia a vítima. Com certeza se encontrará alguém que precise dele sem ocupa-lo.

Esse alguém, almejado por Benjamin, bem poderia ser Ruy Belo, que em sua busca por uma ocupação sensível dos espaços precisa, sim, habitar o espaço vazio sem jamais oblitera-lo.

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