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O espetáculo da humilhação, uma resenha crítica.

  • Foto do escritor: Manoela Rónai
    Manoela Rónai
  • 19 de abr. de 2018
  • 7 min de leitura

(Esse trabalho foi desenvolvido em 2016.1 para uma disciplina da professora Elizabeth S. Lewis)




O artigo O espetáculo da humilhação, fissuras e limites da sexualidade, escrito por Maria Elvira Díaz-Benítez, tem como foco a descrição e a análise de alguns aspectos da pornografia conhecida como humilhação ou humiliation porn. Inicialmente, Díaz-Benítez nos dá uma explicação genérica das práticas retratadas nessa modalidade de filme e lista vários exemplos mais específicos para que tenhamos uma compreensão real do escopo de suas análises. Já no começo do seu artigo entendemos que toda a discussão se dará sobre produções que forçam a linha entre consentimento e abuso, dor e prazer e nos damos conta de qual é a principal tensão para Diaz-Benítez: a representação e o real.


Nos casos examinados pela autora, o uso da violência, da dominação e da força é explorado de diversas maneiras e, apesar de existir a possibilidade da participação de homens, quase sempre as personagens são duas ou mais mulheres que se enquadram na dupla dominadora/escrava. Nessa associação, estão sempre presentes elementos de dor e medo e frequentemente também de nojo, mostrando com clareza que o par se vincula por uma relação de poder. A escrava pode ou não ser imobilizada; espancada; esmagada; penetrada, por homens ou por mãos e punhos (fistfucking); pisoteada (trample), podendo até ter a dominadora pulando sobre ela (trample and jump); levar chutes no rosto ou estômago; ser sufocada de diversas maneiras, como a dominadora sentando sobre seu rosto (face sitting); ser forçada a permanecer parada enquanto a dominadora “peida” em seu rosto (farting); ser forçada a ingerir unhas, restos de pele – depois da dominadora limar os pés – quaisquer secreções corpóreas, sujeiras diversas, fezes (scat), comida em excesso e lamber ou chupar partes do corpo da dominadora, como os pés (feetlove) ou o ânus. Todas essas práticas podem ser exageradas e, quando muito intensas, recebem adjetivos como extreme (extrema), excessive (excessiva), dangerous (perigosa) ou dirty (suja).


Como as filmagens são feitas para o deleite de clientes, as necessidades do mercado são sempre levadas em conta pelos produtores. Conforme nos explica Díaz-Benítez, é assim que se cria a necessidade de transmissão de uma ideia de realismo. Os consumidores querem que as cenas pareçam reais. Por isso, a reação fisiológica ou emocional da escrava às práticas, como lágrimas, vômitos e engasgos são procuradas e sempre bem-vindas. Além disso, algumas medidas são tomadas na própria preparação para a filmagem: se escrava e dominadora serão mãe e filha na história, procuram-se mulheres não só fenotipicamente parecidas, mas até consanguíneas. Ao contrário de outras produções do pornô mainstream – que a autora chama de sexo coreográfico, nas quais há uma ordem esperada dos acontecimentos: alguns beijos, sexo oral, sexo vaginal e sexo anal –, nas produções de pornografia de humilhação, as escravas e dominadoras recebem instruções do que devem fazer, mas não de como e em que ordem fazê-lo.


Apesar de saberem que serão humilhadas, as escravas não sabem qual será o sentimento dessa humilhação no momento em que ela ocorrer. Quando a escrava passa a sentir um medo real das ações da dominadora e do desenvolvimento da cena é que os produtores e clientes se sentem mais satisfeitos. Na divulgação de alguns filmes, é usada a expressão “choro real em tempo real” valorizando mais uma vez esse momento no qual a escrava extrapola os limites da encenação e vive a situação de maneira mais crua. A esses momentos, que são transformadores tanto para o drama quanto para a performer, a autora dá o nome de fissuras.


Surge aí a primeira questão significativa para a análise dessas produções: não seria um desafio pensar nas fissuras como mera interpretação se o medo – e também a dor e o nojo – são sentidos de fato? Mas que tipo de realismo existe em um momento todo criado dentro do contexto de uma encenação? A autora nos questiona: haveria ali um gesto de extrapolação de fronteiras? E nos lembra ainda que em Hacia una teoria del performance, Richard Schechner (2000) teoriza sobre uma segunda realidade que seria criada a partir daquilo que acontece no marco teatral. Para ele, o jogo da encenação não seria nem falso nem débil, pois é capaz de provocar mudanças nos atores e no público.


Díaz-Benítez vai além, propondo que, por ter no excesso uma de suas características essenciais, a humilhação construiria e tornaria possível uma hiper-realidade que daria o tom dessas produções. Por serem “mais reais que o real” e mais exageradas que o ordinário, essas práticas ao mesmo tempo atraem os clientes e sugerem a eles que se trata somente de uma performance. Na fissura, no entanto, o hiper-real decai para tomar forma de real. Quando Jaime Ginzburg afirma sobre o catch que os espectadores querem que tudo seja presenciado com intensidade, mas que nada disso seja de fato real (Ginzburg, 2011: 70-71) acaba criando uma referência para pôr em contraste a humilhação e outras formas de espetacularização da violência. Na humilhação, é importante não somente o que se vê, mas aquilo no qual se crê: o espectador tem que poder acreditar que as cenas aconteceram de fato.


É na criação de fissuras que esse limite é tocado, e com ele o limite entre consentimento e abuso. Por ocorrer quando a escrava sente uma dor que não havia previsto no momento da negociação e para qual não poderia ter sido preparada – apesar de se dar em ambiente controlado, no qual logo se refaz a dinâmica dos sets de filmagem – é que se torna impossível determinar com certeza em que lado dessa linha está a verdade: a humilhação transita por essa corda-bamba. Quando o pensamento a respeito das fissuras atinge seu ápice, Díaz-Benítez nos apresenta uma de suas ideias mais pertinentes e instigantes, ainda que rapidamente:


(...) venho ponderando que a fissura não é exclusiva nem do repertório sexual, nem do universo comercial da sexualidade. É possível pensá-la em função de outras relações sociais (pais e filhos, por exemplo) e quanto aos afetos: crenças e atos sobre infringir dor e sofrimento entre os pares de um casal pelo fato de serem observadas como características inerentes ao amor. Nesses casos, a fissura pode ser percebida como uma espécie de exacerbação ou de elasticidade do limite moral, isto é, algo que pode ser desejado pelos sujeitos em certos termos e momentos, mas capaz de se tornar indesejável em outros, em um movimento micro.

Aqui, a autora parece ter atingido um caminho para a resposta a seus próprios questionamentos. Se a fissura é um decaimento do hiper-real ao real, mas é também a elevação da encenação ao real e a exacerbação e elasticidade dos limites morais, então estamos todos tão habituados com essas transições – pois elas acontecem cotidianamente nas nossas relações afetivas e por vezes são vistas, de acordo com a própria autora, como inerentes ao amor – que não há mais sentido em se buscar essa linha transitória, apenas aceitar que, onde quer que ela esteja, será volatilizada constantemente. A humilhação é abuso, mas é também consentimento.


Ressalto que minha postura de aniquilação do limite entre conceitos que são, ao mesmo tempo, díspares e vizinhos não significa imaginar que eles não existam. Há, evidentemente, situações em que o abuso – ou o consentimento – são claros e, nessas situações, devem ser vistos como tal. Apenas tento propor uma solução para um dos problemas propostos pela autora. Díaz-Benítez se preocupa muito em pontuar e caracterizar a dificuldade de se estabelecer esse limite, mas acaba não propondo nenhum viés interpretativo final possível para essa questão. Talvez, munidos da conclusão de que as produções de humilhação eliminam de vez o limite que se estabelece entre abuso e consentimento, dor e prazer e real e representação, poderíamos então voltar a uma questão mais grave, que a autora propõe no fim de seu texto, quando aborda a relação entre as questões feministas e suas próprias aflições: se a humilhação é um símbolo – real ou não – da opressão, porque devemos permitir sua continuidade?


Díaz-Benítez faz uma análise dos aspectos em que essas produções podem ser consideradas paródias e em que ponto podem ser subversivas – uma vez que uma paródia, em si mesma, não é necessariamente subversiva (Judith Butler, 2003, p.198). É recorrendo mais uma vez a Jaime Ginzburg que temos uma das perguntas mais importantes até então:


(...) por que a sociedade contemporânea admite, com intensa frequência, interesses em produtos culturais voltados para a expectativa de um gozo resultante na contemplação do sofrimento humilhante do outro como um fenômeno de espetáculo? (...) que política tem sido estabelecida e consolidada na indústria do entretenimento, na qual a contemplação da dor é trivializada, imediatista e admitida para o consumo massivo?

Tais questões estão presentes no texto, mas não parecem ser o foco das aflições de Díaz-Benítez. Entendo que nossos posicionamentos divergem a partir de uma interpretação sobre a qual discordamos enfaticamente. Ao falar da dificuldade de análise da violência em filmes que retratam ataques sexuais, Díaz-Benítez afirma:

(...) Não acredito que essa pornografia seja a causa do abuso e da barbárie contra as mulheres nas nossas sociedades, pois seria como pensar que quem assiste a um filme de Quentin Tarantino desenvolve vontade de matar, ou mata de fato. Mas acredito que há nessas imagens de estupro uma encenação que se pretende hiper-real e que dá poucos espaços para as negociações de sentido.

Baseio-me na palestra de Lillian Bustle, Despindo uma visão corporal negativa[1], na qual ela apresenta dados de um estudo feito a partir da apresentação de tipos de corpos divergentes[2]. No estudo, pessoas eram apresentadas a corpos diversos e perguntadas a respeito da sua preferência. Concluiu-se que, quanto mais pessoas viam um determinado tipo de corpo, mais elas desejavam aquele tipo de corpo. É claro que essa pesquisa não diz respeito a pornografia e nem como absorvemos a quantidade de violência com a qual a mídia alimenta nosso consciente, mas acho inconsequente pensar que não há ligação entre o aumento do consumo de imagens violentas e o aumento da violência real.

Por acreditar fortemente que nossa dieta visual influencia nossas escolhas quotidianas, penso que o peso dado a esse questionamento levantado por Jaime Ginzburg é pequeno e que esse assunto deveria ser o eixo central de pensamento sobre as produções que envolvem práticas de humilhação no contexto da pornografia e do universo comercial da sexualidade.

[1] Stripping away negative body image, tradução minha


[2] Visual diet versus associative learning as mechanisms of change in body image, publicado pelo Journal of the public library of science, PLoS ONE.

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