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Da fotografia como forma de arqueologia

  • Foto do escritor: Manoela Rónai
    Manoela Rónai
  • 20 de abr de 2018
  • 5 min de leitura

(texto escrito para Teorias Estéticas da imagem em 2017.1, para a professora Carla Miguelote. Com ele, foi apresentado um ensaio fotográfico com 5 fotos que estão abrindo esse site, na página inicial)


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Edward Steichen, Milk bottles, Spring.

Em O Pão do Corvo, Nuno Ramos nos apresenta sua Lição de Geologia e afirma:


Há uma camada de poeira que recobre as coisas, protegendo-as de nós. Polvilho escuro da fuligem, fragmento de sal e de alga, toneladas de matéria em grãos que vão cruzando o oceano transformam-se em fiapos transparentes depositados pouco a pouco para preservar o que ficou embaixo. (RAMOS, 2001, p.9).

Não é à toa que o texto, em seu título, remete à geologia. O Dicionário Aurélio define geologia como "ciência cujo objeto é o estudo da origem, da formação e das sucessivas transformações do globo terrestre, e da evolução do seu mundo orgânico" (FERREIRA, 1999, p.933). E é precisamente a origem e a formação das coisas que desperta o interesse de Ramos nesse pequeno texto. E, além disso, o aspecto dual que os objetos apresentam entre a ocultação vinda da ausência e a necessidade de testemunhas para reafirmar sua existência. Parecem ser muito próximos o pensamento geológico de Ramos e as reflexões sobre fotografia de Susan Sontag. Ao fim do seu texto, o artista paulista afirma: "[...] abraçamos o que foge de nós, invertemos seu próprio desgosto e recusa, julgamos como perfeita a natureza envergonhada e defeituosa, aderimos, enfim, perdidamente e para sempre ao que parece belo, porque nos conformamos ao amar"(RAMOS, 2001, p.11). A escritora americana, ao analisar as consequências e o papel da fotografia na sociedade moderna em “O heroísmo da visão”, também vai abordar a questão do belo. Sobre isso, ela diz: " O papel da câmera no embelezamento do mundo foi tão bem-sucedido que as fotos, mais do que o mundo, tornaram-se o padrão do belo. [...] As fotos criam o belo e — ao longo de gerações de fotógrafos — o esgotam" (SONTAG, 2003, p. 64)


Ainda no livro Sobre a fotografia, Sontag menciona a importância de Edward Steichen para um processo que, ao longo das últimas décadas, foi responsável pela revisão do conceito de belo.

Em 1915, Edward Steichen fotografou uma garrafa de leite na saída de emergência de um prédio, um exemplo remoto de um conceito totalmente distinto do que é uma foto bela. E desde a década de 1920, profissionais ambiciosos, aqueles cuja obra alcança os museus, afastaram-se resolutamente dos temas líricos, explorando de forma conscienciosa um material comum, vulgar ou mesmo insípido. (SONTAG, 2003)


Foi justamente essa revisão do belo e a proposta de dar atenção ao que não recebe atenção que me levou ao ensaio que aqui apresento. "Fotografar é atribuir importância" (SONTAG, 2003), diz Sontag em seu livro. E foi dessa forma muito simples que Edward Steichen e o grupo de fotógrafos que com ele voltaram sua atenção (e câmera) para novos lugares mudaram a história da fotografia. Atribuindo importância a algo que, até então, não era digno de ser fotografado.

O que mais impressiona na fotografia Milk bottles, Spring, tirada em Nova Iorque em 1915, é o contraste entre as construções brutas e imponentes dos prédios americanos, um resquício de natureza, nos pequenos galhos de árvore que resistem ainda em quadro, e a marca que nos parece tão mais sensível da passagem e presença de humanidade: as garrafas de leite. Enquanto as edificações marcam a presença de um homem distante e de uma civilização mais do que de uma humanidade, a garrafa de leite atesta a presença de uma pessoa. No meu ensaio, busquei recuperar esse tipo de vestígio, mais do que de mera civilização. Levando o ideal de Steichen a um extremo, quis achar essas marcas de interferência em um cenário devastado, algumas delas interferências tão passageiras que talvez a única forma de recuperar sua existência seja por meio da foto.


Lição de Geologia é uma defesa da ideia de escavação como única maneira possível de recuperar as coisas — ou os fatos. E essa ideia está presente também em Escavar e Recordar, fragmento de Rua de Mão Única, de Walter Benjamin. Nele, lemos:

Quem pretende se aproximar do próprio passado deve agir como um homem que escava. Antes de tudo, não deve temer voltar sempre ao mesmo fato, espalhá-lo como se espalha a terra, revolvê-lo como se revolve o solo. Pois "fatos" nada são além de camadas que apenas à investigação mais cuidadosa entregam aquilo que recompensa a escavação. (BENJAMIN, 2012, p.245).

E cá estamos, voltando ao mesmo fato. Escavando um pensamento disparado por Steichen em 1915. Dando atenção ou atribuindo importância àquilo que não é digno de fotografar-se, mais uma vez. Revisando, mais uma vez, o belo. É claro que desde 1915 a história da arte fotográfica evoluiu e essa questão pode ter tomado uma dimensão menor. Mas creio que tal tarefa nunca se esgotará. Enquanto houver padrões de beleza e conceitos pré-estabelecidos do que é belo, será necessário virar a câmera em outra direção. Enquanto o homem promover esquecimento, será necessário o trabalho do arqueólogo. Precisaremos, todos, escavar. E a fotografia pode ser uma forma de escavação. As cinco fotos que apresento neste ensaio são fruto dessa tentativa de aproximar-se de um objeto e retirar dele a camada de pó que o afasta de nós. Devolver potência a vestígios ignorados. Steichen propunha, com suas garrafas de leite, um olhar para um sujeito ausente. Suas fotos permanecem atuais não somente pela necessidade de sobrevida de um tempo e lugar que não existem mais. Não somente por tornar recuperáveis as marcas de uma época e nos lembrar de uma Nova Iorque na qual ainda existiam leiteiros, mas por levar nosso olhar ao que há de admirável no que é cotidiano — e que pode também ser passageiro.


Uma pegada deixada por um desconhecido na areia, então, está numa relação direta com a tradição inaugurada por Steichen. É uma busca de conexão. Essas cinco fotos são um retrato de pequenos traços de humanidade. Duas pegadas sem dono. Uma garrafa esquecida e recoberta por um misto de pó e areia. Algo que um dia foi um carro e que nos remete imediatamente ao destino incerto de um possível motorista. O banheiro abandonado, cercado por nada, mas comprovando a passagem de um homem.

Bibliografia

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI : o dicionário da língua portuguesa, 3ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999 RAMOS, Nuno. Lição de Geologia. In: RAMOS, Nuno. O Pão do Corvo. São Paulo: Editora 34, 2001.

ROUILLÉ, André. A fotografia dos artistas. In: ROUILLÉ, André. A fotografia entre documento e arte contemporânea. São Paulo: Senac, 2009.

SONTAG. Susan. O heroísmo da visão. In: SONTAG. Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

BENJAMIN, Walter. Escavar e Recordar. In: BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas II - Rua de Mão Única. São Paulo: Editora Brasiliense, 2012

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