Penélope: dona do próprio destino?
- Manoela Rónai

- 19 de abr. de 2018
- 7 min de leitura
(trabalho apresentado em 2017.2 para a professora Elizabeth Sara Lewis)
O ano é 2013. Uma professora de análise e crítica musical do Programa de Pós Graduação em Música da UNIRIO se propõe a discutir de que maneira a música pode auxiliar na construção de personagens, a partir da ópera Il Ritorno d’Ulisse in Patria, do compositor italiano Claudio Monteverdi. Apresenta o prólogo, uma ária, cantada pela figura alegórica “Fragilidade Humana”, na qual o Amor, o Tempo e a Fortuna zombam e ridicularizam a personagem principal. Depois, fala um pouco da história da ópera, de modo geral, e dessa ópera, especificamente, mostrando então a cena final: um belo dueto de amor cantado por Penélope e Ulisses. Num canto da sala, um aluno e uma aluna dão as mãos e ele tenta esconder dela que está chorando.
Se esse aluno, nessa circunstância, sente a necessidade de se comportar de acordo com uma performatividade de gênero esperada para um homem heterossexual, podemos somente imaginar como os papéis de “feminino” e “masculino” exerciam pressão nos membros da sociedade em 1640, quando foi composta a peça em questão. Tentar – ainda que como exercício de imaginação – se situar nessa atmosfera do século XVII é essencial para a análise que proponho aqui, de uma passagem musical e textual que foi escrita em um período temporalmente tão distante de nós. Talvez, tivesse sido escrita hoje, a peça pudesse ser analisada sob outro filtro e isso certamente mudaria várias de minhas conclusões, mas o que é subversivo e revolucionário em uma determinada época e sociedade pode ser o banal e até mesmo o tradicional e conservador de outra(s).
Essa obra é uma das mais importantes óperas do período barroco e é considerada essencial para estabelecer a ópera como forma. Por isso, não foi de maneira nenhuma um desvio, mas sim uma consagração do estilo musical feito na época. No entanto, foi nesse período que compositores e libretistas começaram a abrir caminho para críticas aos papéis de autoridade, como nos aponta Susan McClary, uma importante musicóloga e estudiosa dos gêneros:
Mas essa construção de mulheres poderosas pode também ser entendida como potencialmente libertadora, pois a mudança em representação de gênero estava atada à crise mais genérica em todas as formas de autoridade – politica, econômica, religiosa e filosófica – durante a primeira metade do século XVII. Significativamente, compositores e libretistas garantem o direito de lançar ataques contra a autoridade tradicional não apenas aos personagens femininos, mas também aos serviçais, que reclamam constantemente sobre a opressão de classes.[1]
Il Ritorno d’Ulisse in Patria foi escrita nesse contexto, com libretto de Giacomo Badoaro baseado na epopeia de Ulisses, que parte para a Guerra de Tróia com objetivo de resgatar Helena de Paris, mas acaba se perdendo pelo caminho e vivendo uma trajetória muito difícil – aquela que é narrada por Homero na Odisseia. A ópera começa quando Ulisses finalmente chega, depois de anos de luta em Tróia – que também é tema de Homero, dessa vez na Ilíada – e de perambulação pelo mar. Nesse meio tempo, as pressões se acumulam sobre a fiel Penélope para que tome um marido dentre os reis de regiões vizinhas. Por vinte anos, apesar de não receber qualquer prova de vida de Ulisses, e utilizando o subterfúgio da manta tecida de dia e desfeita à noite (talvez uma apta simbologia para sua vida, em que o dia é ativo e produtivo e as noites vazias e insones) ela consegue driblar seus inúmeros pretendentes. Quando seu esposo finalmente chega a Ithaca, é natural que ela se mostre extremamente desconfiada de sua identidade e seca em relação a ele.
Mesmo depois de Ulisses ter sido reconhecido pelo filho, pelo servo fiel, pela aia de Penélope e por várias outras personagens, a rainha só aceita a identidade do marido quando ele descreve sua cama – na qual nenhum outro homem jamais havia posto os olhos – que tem uma manta de seda feita por ela, com o bordado de Diana, a deusa da caça. Aqui, mesmo sem conhecimento algum da história pregressa, já temos o início de uma caracterização dessa mulher como uma personagem forte. Mesmo em sua cama, local de repouso e de amor, Penélope escolhe fazer uma homenagem a Diana e não a Vênus, deusa do amor, como poderia ser mais natural.
O período de ausência de Ulisses não foi só um período de guerra para ele, mas também para ela, que reinou sozinha tendo que enfrentar a pressão da sociedade. Para isso, chegou a convocar deuses para matar pretendentes insistentes e indesejados, que tentavam convencê-la a se casar, afirmando que ela precisava de um marido para ajudá-la a tomar as decisões em Ithaca (ou seja, homens que queriam tomar-lhe o poder e que declaravam, em seu canto, que sem o homem a mulher é incompleta). Para manter sua posição de comando, Penélope teve de se tornar cada vez mais dura, lançando mão de certos artifícios que eram atribuídos à masculinidade. Ulisses, por outro lado, já sabe que está diante de sua amada e, por isso, se permite momentos de muita doçura e ternura. Tal exposição dos sentimentos, no século XVII, certamente não era habitual para um homem, ainda mais um herói guerreiro, um marinheiro rude. Se até hoje há quem sustente esse retrocesso, de impedir homens de manifestarem sentimentos, podemos imaginar o que seria a praxe de 400 anos atrás.
Uma coisa importante do texto é ver como Ulisses tenta se utilizar das palavras – e somente delas – para convencer a esposa. A postura respeitosa é essencial para que possamos ver essa obra como crítica dos papéis de gênero esperados da época. Ulisses poderia ter imposto um beijo à esposa; e ela teria reconhecido o seu beijo. No contexto de 1640, isso não causaria espanto. Mas os autores tiveram a sensibilidade de retratar o amor como fruto de delicadeza, e nunca violência. Diálogo, nunca força. Mais ainda: na cena dos pretendentes à mão de Penélope, a sedução dos três reis, que a cobrem de presentes (a referência óbvia aqui é a dos reis magos, com suas ofertas de mirra e ouro) não funciona, pois eles insistem em apontar que ela é incompleta e que precisa deles para se tornar um ser viável. É o mendigo (Ulisses disfarçado), que nem ao menos reivindica o prêmio (até porque considera que sua esposa não pode ser objetificada, transformada em troféu), quem acaba vencendo o desafio do arco e da conquista. O amor só lhe convém se for oferecido e não imposto.
No dueto final são dois iguais que dialogam. Apesar de ir contra muitas análises que consideram essa ária como um reforço dos papéis de gênero tradicionais, entendo que é, antes, uma peça que mostra a força da personagem feminina, que possibilita o final feliz. Antes de reconhecer o marido e aceitá-lo de volta, Penélope afirma: “nem mágica, nem feitiços poderão perturbar a minha fé, a minha vontade.” Aqui vemos a importância da vontade dela em detrimento da vontade dele. Ulisses festeja o amor reencontrado, comparando sua amada a imagens caras ao homem do mar: as ondas calmas, o porto seguro, o repouso. Penélope, ao reencontrar o sentimento esquecido, dá ordens à natureza: “Resplandeçam em glória, oh Céus, refloresçam, prados! Brisas alegrem-se! Cantem pássaros, riachos, murmurem docemente, alegrem-se agora, folhagens verdejantes. E ondas sussurrantes, consolem-se agora!”. Não são palavras de uma mulher submissa ou fraca. São ordens de rainha.
É notável ainda que esta introdução, bastante extensa (quase 60 compassos) pertença integralmente à rainha. A Ulisses cabe escutar. Além disso, a palavra central, em torno da qual finalmente irão girar a ação e os sentimentos, não é “amor”, não é “paixão”. É simplesmente “sim”. O que possibilita o amor é a aceitação de seus próprios sentimentos, é a permissão – que apenas ela pode dar – para amar e ser amada. O “sim” é a chave; e é ela, Penélope, a única que detém o poder de abrir esse cadeado. Nesse momento, ela utiliza de uma forma musical usada no período sempre para retratar o canto dos deuses, o canto parsaggiato, que reitera a caracterização da personagem como uma mulher forte, mas, também, nos leva a entender que, ao amar e exercer o poder de amar, ela se eleva ao patamar dos deuses.
A passagem “Solte as amarras da tua língua, desata os nós para a alegria! Um suspiro, um ‘ah’, desfaça os nós de sua voz.” seria a mais polêmica, pois muitos alegam que Ulisses estaria dando à Penélope o direito à fala. Estranho muito tal interpretação, pois, nesse momento, já vimos Penélope cantar extensamente. O que parece acontecer, aqui, é associação entre amor e capacidade de expressão. Mais que isso, Ulisses pede à esposa que solte as amarras da língua: antes de sua volta, Penélope se vira forçada a usar palavras duras, a comandar, a ser rígida, como um nó. Agora, com seu amado, pode novamente usar palavras “frouxas”, doces, sem peso. Tendo que dominar e governar Ithaca, não era permitido nem suspirar. Agora, pode ser livre para falar de amor, achar sua própria voz e falar o que quiser, não o que é obrigada para manter a imagem de fiel e de rainha. Não há mais nós em sua garganta para prendê-la a nenhum enunciado.
O único momento em que o texto me parece realmente reforçar estereótipos de gênero de maneira condenável é na fala da aia, Ericleia, que caracteriza a língua feminina como tagarela. Nesse trecho, creio que o perfil da mulher fofoqueira foi reforçado sem a possibilidade de uma leitura mais generosa. Ao criticar o funk no qual mulheres buscam somente inverter os papais de dominação e dominador, Lopes cita Morgan (1997, p.132): a reivindicação feminista não é sobre o feminismo, “é sobretudo uma reivinidcação que busca desnaturalizar e ampliar as escolhas dos gêneros, aumentando, nesse caso, o campo de possibilidades de ‘ser mulher’ e de ‘ser homem’.” Claro que uma das características valorizadas em Penélope é a fidelidade a Ulisses, mas a mesma é cobrada dele (que resiste à várias propostas, inclusive do canto de sereias), por isso não acho que esse ponto seja especialmente problemático e, de modo geral, penso que a obra, especialmente se a analisarmos no contexto na qual foi produzida, é de grande ajuda para “ampliar as escolhas dos gêneros” e aumenta as possibilidades do “ser mulher” e do “ser homem”.
[1] But these constructions of powerful women may also be understood as potentially liberating, for the shift in gender representation was bound up with the more general crisis in all forms of authority – political, economic, religious and philosophical – during the first half of the seventeenth century. Significantly, composers and librettists grant the right to launch attacks on traditional authority not only to women characters, but also to servants, who complain constantly about class oppression.



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